A representação das ilustrações nos contos de fadas para adultos
Não é nenhum segredo que alguns dos contos de fadas mais amados vêm de uma coleção bastante horrível de fábulas dos Irmãos Grimm e que muitos clássicos como Chapeuzinho Vermelho e Cinderela foram suavizados e floreados para o público infantil.
A origem desses contos é de fato muito antiga e nem sempre foram relacionados especificamente ao universo infantil. Mas nos dias de hoje, eles possuem tantas alterações e versões quanto podemos imaginar. Antes de Walt Disney nos dar o “felizes para sempre”, muitas dessas histórias tinham um desfecho bem diferente: elas eram contos de fadas cheios de horror e maldade, muito mais mórbidos do que poderíamos imaginar, simplesmente porque assim foram criadas. Passando muito longe de histórias contadas para criança dormir.

“Na versão da francesa Claude Cahun, escrita em 1925, a Cinderela mostra tendências masoquistas e o príncipe tem fetiches com sapatos” - Joana Madeira
Além disso, essas história costumam carregar muitos dos elementos que hoje constituem a ficção literária de horror, como abandono, violência, assassinatos, canibalismo, criaturas monstruosas, entre tantos outros.
No que diz respeito a ilustração, é possível perceber características em comum com as obras recentes que serão aqui exemplificadas e os livros ilustrados séculos atrás. Portanto, considero importante explicar as técnicas utilizadas naquela época e os estilos de desenho em obras de fantasia atuais que acompanham as técnicas usadas antigamente.
Essas técnicas estão relacionadas com o desenvolvimento das tecnologias de reprodução. Pois, depois do surgimento do papiro, que evoluiu para a utilização do pergaminho, em seguida o aparecimento do papel, as práticas de ilustração consistiam na utilização de entalhes em madeira, cobre e a pedra. Em seus termos artísticos: xilogravura, talho-doce e litogravura, respectivamente.
XILOGRAVURA
Esta é uma técnica antiga que nasceu na China. É realizada a fricção do verso do papel em relevos baixos sobre pranchas de madeira preenchidos por tinta. Porém, devido à sua forma de reprodução, as impressões apresentavam traços grossos e com pouca precisão.
– Xilogravura de “Kunst und Lehrbüchlein”
TALHO-DOCE
Essa técnica permite maior fineza e exatidão no traçado. Também conhecido como Calcografia, a gravura do desenho que se pretende imprimir é entalhado diretamente na chapa metálica (que pode ser feita a partir de placas de cobre, zinco, latão ou alumínio) por incisão direta de pequenas ferramentas de aço de diferentes tamanhos ou pelo uso de banhos de ácido.
– Gravura em metal de Gustave Doré
LITOGRAVURA
A litogravura é uma gravação feita por meio de desenhos feitos sobre a pedra. Trata-se de um processo químico, que tem como base o princípio da repulsão entre água e óleo. Por meio de uma ferramenta gordurosa, como um lápis ou bastão, o desenho surge graças ao acúmulo de gordura na superfície da matriz. A litogravura se diferencia por ser a que mais
– Litogravura de Marcia Széliga | M. C. Escher se parece com a pintura.
De fato, a evolução técnica contribuiu para o aprimoramento das ilustrações. Para tanto, trago aqui algumas obras, autores e ilustradores que fizeram parte dessa trajetória.
☞ CINDERELA

Esta é a primeira imagem que aparece na em Cinderela escrito por Charles Perraulte ilustrado por Gustavo Doré. Nela, aparecem a personagem principal, sua madrinha e o cenário. Feita em litogravura, é possível observar um intenso uso do claro e do escuro, o que aumenta o contraste e a dramaticidade da imagem. Apesar das versões de Perrault, dos Grimm e da Disney serem mais conhecidas, num dos primeiros contos do ciclo de Cinderela, ela se torna empregada doméstica, a fim de impedir o pai de forçá-la a se casar com ele. Em outra versão, a madrasta ruim tenta empurrá-la para dentro de um fogão, mas por engano, incinera uma das irmãs. Além desta obra, existem outras ilustradas por Gustavo Doré, XIX feitas pela mesma técnica:
Chapeuzinho Vermelho Barba Azul Pequeno Polegar
Irmãos Grimm Charles Perrault Charles Perrault
Bom, como dito, essas eram as formas utilizadas para ilustrar os livros da época. Hoje, o ilustrador pode escolher entre técnicas manuais e habituais de ilustração, como o guache, a aquarela, o lápis, o carvão, a colagem e, até mesmo as tradicionais técnicas de gravura. Dito isso, alguns livros publicados atualmente reformulam elementos dos contos de fadas clássicos e, em sua maioria, resgatam convenções antigas utilizadas em alguns dos primeiros livros ilustrados do fim da Idade Média:
No século XIV, Jean Pucelle, o excepcional pintor de miniaturas, desenvolveu um estilo refinado que influenciou as iluminuras por dois séculos. [...] Texto e decoração se tornaram um só, e incluíam pequenas miniaturas emolduradas, bem como figuras dispostas livremente na borda inferior. Pucelle não mais usava fundos sólidos de ouro, mas uma moldura ornamental em torno do texto composta de fontes, folhas, insetos, flores e pássaros cobertos de ouro (CHRISTENSEN, 1959, p. 200, tradução de Palimpsesto, 2019).
Um ótimo exemplo de obra nesse estilo é a seguinte:
☞ A BELA E A ADORMECIDA
A Bela e a Adormecida - Neil Gaiman, 2015
O elemento mais marcante, talvez, seja a ornamentação das bordas com temas florais e o uso do ouro, visívellogo nas ilustrações iniciais. Dessa forma, tais elementos acabaram sempre sendo associados a esse período histórico. A ornamentação é característica fundamental da obra mais importante da Idade Média: a Bíblia. Isso dá ao conteúdo revisionista um tratamento gráfico similar ao de histórias consagradas.
Como sabemos, mesmo que uma ilustração possa expressar sentidos, no caso da ilustração abaixo, o foco está todo direcionado à ação. Inclusive esse foi o motivo de A Bela e a Adormecida ter recebido críticas na época de sua publicação pelo dito teor homossexual do livro.

O beijo entre a suposta princesa e a rainha é posto quase como um clímax visual. A figura congela a imagem e opta pela sensação de prolongamento da duração da ação em vez da sugestão de movimento. Sem o texto ao lado, poderia se imaginar que a cena é muito mais relevante ao conto, visto que o beijo sempre compõe o ápice do conto de fadas e leva ao final feliz. Bom, este não é o caso.
☞ O LADRÃO DE CRIANÇAS
Este, baseado na clássica lenda de Peter Pan, foi escrito e ilustrado pelo próprio autor. O livro traz o conto antigo aos tempos atuais e adiciona suspense, sadismo e fantasia. O ladrão de crianças sequestra meninos e os leva à ilha terrivelmente encantada de Avalon para, na verdade, lutar em sua guerra pessoal.
O Ladrão de crianças - Gerald Brom, 2012
Um detalhe interessante dessa obra é que seu escritor, Brom, é ilustrador especializado em fantasia gótica. Por isso, as imagens possivelmente incomodam e proporcionam uma sensação de algo sinistro, mas não o suficiente para conseguir parar de ler, porque ao mesmo tempo que as ilustrações lhe provocam tensão, lhe atraem para ler o livro.
☞ OUTROS
Foi constatado por Blucher Design Proceedings que, atualmente, existe baixa oferta de contos ilustrados dirigidos apenas para o público adulto. Entretanto, os elementos que compunham os contos de fadas antigamente, hoje integram a ficção literária de terror e, mesmo sofrendo preconceito, fazem sucesso com o público infantil. Em sua maioria, têm a intenção de mostrar que existem perigos que devemos enfrentar, assim superando nossos medos e inseguranças.

O chamado do monstro Excursão ao Parque do Terror
Siobhan Dowd, 2011 Felipe Campos, 2014
O que mais marcou os leitores foram os desenhos. esboços em preto e branco, com maior ênfase no preto e sombreados esfumados para manter uma identidade visual pesada e obscura | Essa história se passa em um circo e apresenta ilustrações sombrias e violentas. O diferencial da leitura é a mistura entre terror e poesia. |
Enfim, histórias em que não se vive feliz para sempre.
Se você gostou dessa temática de livros sinistros e macabros, minha colega Magna apresenta em sua coluna "Sábado Sangrento" resenhas e sugestões de obras nesse estilo.

Referências:
Palimpsesto - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, july 2019.
Andrea Pierina Bandeira - Duas Cinderelas - Criciúma, junho 2011.
S|N - PUC-Rio, Certificação Digital Nº 1011894/CA.
Imagem da capa do blog Macabra.
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