Ilustração de livros táteis
Para viver em um mundo de vastos componentes visuais produzidos e compartilhados de forma contínua e dinâmica, realizar a leitura de imagens se tornou essencial. No caso das pessoas cegas, ler imagens é ter acesso ao mundo imagético através de outros caminhos. Por meio desse mundo imagético, existe uma variedade de referências acompanhadas dos demais tipos de linguagem, como verbais, sonoras, táteis, gestuais e outros.

Alfabeto braile. Imagem por Elizabth Romani
As palavras concretas são as primeiras que memorizamos porque possuímos uma imagem mental do objeto. No caso do cego congênito (quando a criança nasce cega ou quando se torna cega até os cinco anos de idade), esta imagem não é concreta e sim uma imagem imaginada. Por esse motivo, pode ser difícil ser memorizada. Contudo, a imagem mental não deriva apenas da visão, podendo, as imagens táteis, ter o mesmo valor na memória visual como processo associativo.
Além disso, o cego, apesar de não possuir o sentido da visão, pode conhecer formas, tamanhos, ambientes e espaços em virtude da diversidade sensorial que irá favorecer o desenvolvimento do campo perceptível. Portanto, diferentes recursos estão sendo utilizados atualmente na acessibilidade de pessoas cegas frente as imagens, como é o caso dos livros táteis ilustrados. Estes, apresentam desenhos em alto-relevo, dobraduras, linhas de contorno táteis, texturas, sons e cheiros, que despertam o interesse pelo objeto livro. Por isso hoje, vamos falar um pouco sobre como é o processo de criação dessas obras que possibilitam a inclusão do leitor com deficiência visual.

Livro tátil. Fonte: UFRGS Ciência
A imagem e o texto são meios de comunicação com códigos que devem ser adquiridos desde criança, não importando sua condição visual. Desde cedo, é importante fazer associações com as letras em algumas imagens, pois quanto mais cedo o leitor cego se deparar com esta forma de linguagem, melhor será sua compreensão da imagem tátil no futuro. A memória visual é um dos mecanismos utilizados pelos cegos para interpretar uma imagem tátil. No entanto, as crianças que nasceram cegas ou perderam a visão muito cedo terão suas necessidades de aprendizagem diferentes das demais.
Desse modo, deve-se entender que todo estudo da percepção visual é regido pela interpretação da pessoa diante de um estímulo relacionado a imagem e o texto, mas nem todas as sensações são percebidas na leitura tátil. Para isso, com o intuito de favorecer a leitura do material, alguns elementos devem ser evitados, pois apontam divergências entre a linguagem visual e a percepção háptica:

Forma: ao observarmos um objeto, não o vemos isolados, e sim sua escala comparativa, posição e distância. Ou seja, o nosso olhar permite tirar uma conclusão de complementariedade. Por exemplo, quando se tem um círculo incompleto e entende-se seu complemento. Nesse ponto, a percepção visual não se compara à tátil, porque o cego não entende a complementariedade de uma imagem por indução mental. Da mesma forma, o cruzamento de linhas, eixos ou elementos sobrepostos não conseguem ser entendidos pelo tato.
Representação tátil de um peixe
Fonte: Manual de imagens para deficientes visuais

Luz: a luz é representada por meio de gradientes, pois estes têm a capacidade de criar profundidade e volume. A sombra também informa a iluminação projetada e cria um espaço ao redor do objeto. Porém, esses conceitos não podem ser transpostos para a imagem tátil, sendo, essencialmente, uma percepção visual. O uso do degradê, por exemplo, dever ser evitado porque o leitor cego não compreenderá as nuances de tom, prejudicando a leitura da imagem.
Desenho em perspectiva: difícil adaptação tátil
Fonte: Manual de imagens para deficientes visuais

Cor: As três dimensões da cor: matriz, claridade e saturação, não apresentam o mesmo significado, de quem vê, para um cego. Quem perdeu a visão ainda jovem, guarda as imagens mentais e tem a cor como uma referência, mas para cegos congênitos as cores podem ser descritas através de códigos e texturas. Atualmente, existem vários métodos para fazer a leitura das cores.
Imagem colorida e imagem colorida em relevo tátil
Fonte: Manual de imagens para deficientes visuais

Movimento: A velocidade visual depende do tamanho do objeto. Os objetos grandes parecem se mover mais lentamente que os pequenos. A isso também está associado o peso. Objetos maiores dão a impressão de serem mais pesados. Além disso, para ideia de movimento, são utilizadas linhas retas ou onduladas, mas muitas vezes acabam por causar problemas de interpretação.
Pontos em movimento e flecha em movimento
Fonte: Manual de imagens para deficientes visuais
Dito isso, alguns desses princípios de linguagem visual gráfica acabam prejudicando a interpretação da imagem tátil, entre eles:
x os desenhos em grande formato não permitem a formulação da imagem mental;
x elementos espalhados ou muito distantes confundem a percepção do leitor cego;
x as imagens fragmentadas não são complementadas pelo leitor;
x a repetição de texturas em significados diferentes confunde a leitura.
No entanto, alguns partidos de desenho contribuem para o rápido entendimento da mensagem, entre eles:
v o uso de formas elementares;
v a linha de contorno bem definida;
v o emprego de diferentes materiais;
Ainda, o ensino às pessoas com falta de percepção visual exige a adaptação de materiais de modo que a imagem mostrada aos videntes possa também ser acessível. Dessa forma, existem diversas maneiras de se produzir imagens em relevo. As adaptações de imagens táteis para cegos consideram, na maioria dos casos, três tipos, que se destacam:

Pontilhado linear
Esta é uma adaptação na qual o contorno da imagem ou suas bordas, recebem um tratamento pontilhado, mas não é o código braile. Apesar dos pontos assemelharem-se com a célula braile, os pontos utilizados nos desenhos são ligeiramente menores e um pouco mais distantes entre eles, de forma que o leitor entenda que não se trata de um texto.
Imagem por Elizabth Romani

Bidimensional ou tridimensional
Adaptação na qual a imagem passa a ter duas ou três dimensões, assumindo o formato mais sólido da imagem, muitas vezes, realizado com materiais como o EVA. Processo artesanal e de baixo custo.
Imagem por Elizabth Romani

Vacuum-forming
Imagens impressas a partir de uma matriz em relevo metálico ou de madeira que, ao colocada num equipamento que fornece calor e pressão, molda o plástico que assume a forma da matriz. Infelizmente este é um processo caro, que só compensa quando a matriz será reutilizada.
Imagem por Elizabth Romani
Esses materiais podem ser considerados artefatos culturais, pois são capazes de ampliar e modificar as formas de ação do sujeito cego.
A estratégia para interpretar a leitura das imagens táteis se começa com a imagem mental geral do contorno e, posteriormente, os detalhes internos que ampliam as possiblidades de reconhecimento. Diante disso, entende-se a relevância dos detalhes, principalmente as particularidades internas que configuram a ilustração, por exemplo: para um rosto, bastaria a representação de dois olhos um nariz e uma boca. Mas, o excesso de detalhes pode confundir a interpretação. O abstrato não é compreendido pelos leitores cegos. Então, a relação do texto com a imagem tátil deve ser a mais clara possível.
Mapas táteis do brasil. Fonte: Manual de imagens para deficientes visuais
Tomando esse pressuposto, recentemente, tem sido expandido o uso ou a criação de acervos táteis, no qual réplicas de quadros, maquetes e esculturas servem de apoio para o deficiente visual entender do que se tratam as obras, tendo uma experiência mais próxima do que está sendo exibido. Assim, cria-se um diálogo entre objeto e pessoa, trazendo uma maior compreensão do universo do artista em questão.
Fonte: advcomm
Em 2015, o Museu do Prado, em Madri, colocou em cartaz a mostra “Hoy Toca el Prado” (Hoje Toque o Prado), na qual foram oferecidas seis réplicas de obras de arte famosas, como a Monalisa de Leonardo DaVinci, com aplicações de texturas e volumes impressos com tinta especial. Uma forma de sentir para ver.
E, de fato, a arte está ligada aos sentimentos humanos que podem ser representados por cores vibrantes e intensas, como um casal que caminha abraçado, um cachorro ou um músico. Nesse contexto, um artista, mesmo sem enxergar, carrega em seus dedos a capacidade mágica de trabalhar com cores e formas na tela.
JOHN BRAMBLITT
As telas do norte-americano John Bramblitt estão presentes em mais de 20 países. Ele é protagonista de dois documentários e tem diversos livros escritos sobre arte.
Bramblitt perdeu sua visão gradualmente ao longo de 20 anos, ficando completamente cego em 2001, devido a uma complicação em suas crises de epilepsia que começaram quando ele tinhas apenas 2 anos. Além disso, ele nunca havia pintado antes, mas foi ao tentar brincar com o pincel e com a tinta que descobriu sua nova razão de ser. “Para mim, o mundo é muito mais colorido agora do que era quando eu enxergava“. Disse ele.

Bramblitt descobriu ser possível enxergar através do tato, usando a visão háptica. Com uma tinta de secagem rápida, ele consegue sentir na ponta dos dedos a forma que compõe na tela e, com o auxílio de etiquetas em braile nos tubos de tinta, consegue fazer a mistura certa das cores. Ele descobriu, inclusive, que cada cor possui uma textura diferente e, hoje, consegue sentir e enxergar à sua maneira cada quadro que pinta.
Além de pintar com frequência, Bramblitt trabalha ainda como assessor no Metropolitan Museum of Art de Nova York, nos EUA, onde coordena projetos que garantem acessibilidade à arte.
Confira algumas de suas incríveis obras:
Fonte: hypeness
Por fim, podemos perceber a importância do acesso à imagem pela pessoa cega por diferentes formas de adaptações táteis, uma vez que, o cego amplia a sua capacidade de leitura quando tem mais experiência. Este, ainda é um campo recente não só no Brasil, como também em outros centros de pesquisa internacionais. Com isso, muitos caminhos podem ser tomados para produzir uma narrativa estimulante para o leitor com deficiência visual.

Referências:
Design do livro tátil ilustrado - Elizabeth Romani, São Paulo, 2016.
Manual de imagens para deficientes visuais - João Elias Vidueira Ferreira. et al. São Paulo,2021.
Hypeness - O talentoso pintor cego que nunca enxergou nenhuma de suas obras, 2017.
Imagem da capa de Rafik El Hariri do site Dribbble. (modificada)
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