Ilustração e entalhe da rima
“A leitura não verbal também nos dá a oportunidade de desenvolver atividades, principalmente interpretativas, produzindo a partir de outras linguagens, a imaginação criativa.” - Victória Freire
Assim como a nossa querida escritora, autora da coluna “Era uma vez”, argumenta em seu post sobre literatura infantil cearense, entende-se que na literatura de cordel ocorre um diálogo inteiramente ligado entre as linguagens verbal, oral e visual. Considerando que o cordel é escrito para ser lido ou cantado, individualmente ou em grupo, a imagem inserida na capa dos folhetos tem a capacidade de elencar nos leitores o reconhecimento imediato da história, assim como evocar sentidos, significados e memórias.

Entretanto, os primeiros folhetos de cordel, não possuíam imagens. No máximo, traziam informações necessárias para o reconhecimento da história, como: nome do autor, título do folheto, editora de publicação, entre outras informações editoriais importantes. Por esse motivo, eram conhecidos como “folhetos sem capa”, ou de “capa cega”.
Imagem: Folheto sem capa ou "capa cega"
Título: Mulher em Tempo de Crise
Autor: Leandro Gomes de Barros
Fonte das seguintes imagens: Anais do evento XVII Encontro Estadual de História, 2016 – José Rodrigues

A imagem, possui a função de perpetuar e “fazer lembrar” determinadas mensagens e recordações de tempos passados. O poeta Leandro Gomes de Barros foi um dos pioneiros na utilização das imagens nas capas dos folhetos. Diante disso, temos o desenho como uma das primeiras técnicas de ilustração para os folhetos de cordel.
Imagem: Capa de folheto com ilustração desenhada
Título: Antônio Silvino o Rei dos Cangaceiros
Autor: Leandro Gomes de Barros

Depois, alguns poetas começaram deixar os cordéis esteticamente cada vez mais bonitos, com o intuito de transmitir múltiplos significados através da imagem. Portanto, passaram a inserir fotografias de artistas de cinema como técnica de ilustração para as capas dos folhetos. Fotografias estas, que não eram produzidas apenas para os cordéis, mas também para o cinema, sobretudo nos romances que traziam histórias de amor, vingança, entre outros dramas.
Imagem: Capa de folheto com fotografia
Título: O Príncipe João Sem Mêdo e a Princesa da Ilha dos Diamantes
Autor: Francisco Soares Areda. ed: João José da Silva

Até que um dia, o proprietário do acervo de João Martins de Athayde, passa a encomendar desenhos aos santeiros de Juazeiro do Norte, que esculpiam imagens do Padre Cícero em matrizes de madeira para vender nos dias de romaria. Com o intuito de diminuir nos gastos de produção e agilizar o processo de encomendas, passou a utilizar essa técnica para ilustração em seus folhetos.
Imagem: Capa de folheto xilogravada
Título: História de Roberto do Diabo
Autor: José Martins de Athayde
Fonte: Memória da Poesia Popular
Dessa forma, xilogravura torna-se a principal técnica de ilustração dos folhetos de cordel e, posteriormente, sua marca característica. No entanto, A xilogravura surge no cordel como uma forma de atingir o público não letrado, fazendo com que a imagem representasse o que está escrito no texto. Alcançando, agora, público de diferentes faixas etárias e níveis de escolaridade. Assim, a xilogravura e o cordel no Nordeste brasileiro são quase que indissociáveis. "A xilogravura está atrelada ao cordel... é como o carrapato na vaca" (LACERDA, Joseni e BITU, Guto).

Xilogravuras de J. Borges. Fonte: Pinterest
Com relação entre verso e imagem, um poeta formula o seguinte verso: "[...] como o pintor pinta a tela utilizando o nanquim, assim componho meu verso, meu verso componho assim, querendo que agrade a todos, primeiro agradando a mim". (GONÇALVES, Marco Antônio, 2016).
TÉCNICA
De forma simples, a xilogravura é uma técnica em que o artista entalha a madeira, pinta as suas partes elevadas e, por fim, pressiona a madeira em papel ou tela. Detalhe: a imagem deve ser desenhada ao contrário, ou seja, com o efeito espelhado como o carimbo.
No mais, este é um método rústico de reprodução de imagens e textos. As temáticas das ilustrações são formas de chamar a atenção do leitor para temas típicos. Suas concepções enfatizam como o poema pode, através de imagens, expressar o imaginário do sertão.

Processo de Xilogravura. Fonte: LEILOESBR
Enquanto o poeta forma uma imagem do sertão em seu conteúdo, o cordel recria este universo através de imagens e palavras proporcionando o acesso a uma tradição iconográfica. Porém, deve-se entender essa técnica não só por sua definição, mas pelo seu caráter cultural, social, literário, poético e artístico.
Segundo as pesquisadoras Claudilaine Lima e Sandra Guedes, “a xilogravura é esculpida por interioranos, camponeses e citadinos, que expressam a vida do homem com a natureza, as lendas, os mitos, a religiosidade, enfim, tudo que retrata as histórias, os conhecimentos e as experiências de vida”. É a partir dessa característica que a arte de imprimir com a madeira entalhada conversa tão bem com as histórias contadas pelos mestres nordestinos da métrica.
Nos dias de hoje, as ilustrações de cordel e até mesmo as matrizes da xilogravura, têm obtido tanto sucesso que quando “saem” dos livretos de cordel tornam-se uma arte independente e constituem importantes peças de grandes artistas xilógrafos.
Nesse sentido, tendo como berço da xilogravura Juazeiro do Norte, a cidade se tornou centro de reflexões e pesquisas sobre a técnica, trazendo uma das mais significativas manifestações artísticas vinculadas a arte popular. Para tal, artistas relevantes se destacam por marcar época e contribuírem para a solidez do ofício.
JOSÉ LOURENÇO
Entre eles, José Lourenço Gonzaga, mais conhecido por Zé Lourenço, um renomado xilógrafo juazeirense, se destaca por ter uma das maiores representações da xilogravura na região, onde fomenta a arte da xilo com sua criação e impressão sobre azulejos:

Atualmente, José Lourenço é diretor cultural da Lira Nordestina, a antiga tipografia São Francisco. Iniciou seus trabalhos de xilogravura em 1986 e já participou de várias exposições nacionais e internacionais. Ele faz sua parte para manter a tradição da xilogravura viva e se preocupa em passar os conhecimentos para os novos artesãos: “Eu vivo da xilogravura, sustentei e sustento a minha família pela xilogravura. E sempre busco apoiar os novos xilógrafos, através de oficinas e incentivos, para manter essa tradição e não morrer essa arte visual tão importante da nossa cultura”.
Xilogravura em azulejos - J.L. Foto por Adrya
Tanta beleza e originalidade chamam atenção principalmente na decoração, pois humanizam os ambientes e trazem uma sensação de aconchego pelos aspectos da cultura nordestina. Tenho aqui, inclusive, uma matriz - feita por José Lourenço - do retrato de meu pai Augusto Tavares:

Obras como essas, resgatam cenas de um cotidiano que não fazem mais parte da nossa vida e traz lembranças que o tempo não apagou, mas que transforma. Esse é o papel de todo artista na sociedade. O ato de realizar uma xilogravura, cada entalhe feito na madeira é uma marca permanente visível, que traz resultados de todo um processo e que não pode ser apressado nem apagado. De modo semelhante às nossas experiências, tudo aquilo que nos afeta, as cicatrizes de nossas vivências nos moldam. Trabalhos como esse transmitem suas intencionalidades e "formam história". Expressão usada, aliás, para narrar o processo de construção do poema, evidenciando a concepção de "formação", também de aparecimento de uma imagem que se dá através do verso.
Representação de Augusto Tavares - J.L
Matriz de madeira. Foto por Adrya
Diante disso, é possível perceber que a xilogravura consegue transmitir a imagem como um elemento dinamizador da literatura de cordel e nos remete as vivências locais. Portanto, o cordel e a xilogravura contribuem para a sedimentação da memória através do trabalho de artistas como esse, que por amor as suas raízes, retratam e repassam suas vivências e conhecimentos para o resto do mundo, como forma de perpetuar sua marca. Por isso, tento aqui resgatar esse sentimento para que a propagação desse tesouro cultural não se perca.

Referências:
XVII Encontro Estadual de História - A vez e a voz da iconografia: as possibilidades do uso de imagens no campo da literatura de cordel - José Rodrigues Filho, 2016.
Laart - A história da xilogravura de cordel: o papel da técnica na essência da arte - Agencia Papoca, 2019. Imagem-Palavra: a memória e o verso no cordel contemporâneo (Nordeste do Brasil) - Marco Antônio Gonçalves, 2016.
Imagem da capa por Adrya Alexandria.
コメント